domingo, 30 de agosto de 2009

Conjugação

Eu falo
tu ouves
ele cala.

Eu procuro.
tu indagas
ele esconde.

Eu planto
tu adubas
ela colhe.

Eu ajunto
tu conservas
ele rouba.

Eu defendo
tu combates
ele entrega.

Eu canto
tu calas
ele vais.

Eu escrevo
tu me lês
ele apaga.

(CD de poesia: Affonso Romano de Sant'Anna por Affonso Romano de Sant''Anna. Luzdacidade, Nitéroi, 1998.)

Day after

Sou a esperança do futuro
me dizem os mais velhos
embrulhando bombas de ódio quente
como se quesissem ver a esperança
acabar no presente.

(Ulisses Tavares, Viva a poesia viva, p. 13.)

Ssshhh!

Pediram explicações a Deus e Deus decidiu falar.
E Deus fez "Ssshhh!".
E todas as turbinas pararam.
E os tornos.
E as grandes prensas e os geradores.
E o rumor das cataratas.
E o mar também silenciou.
E ouvio o Senhor que era bom.
(...)
E tudo que no mundo era estriduloso silenciou.
(...)

(Luis Fernando Verissimo. Poesia numa hora dessas?!, p. 85-86.)

Neologismo

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.

Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.

(Manuel Bandeira. Poesia completa e prosa, p. 281.)

Soneto de aniversário

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
A medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura

E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de critura
Que vê envelhecer e não envelhece.

(Vinícius de Moraes. Para gostar de ler - Poesias, vol. 6, p. 52.)

A arte de ler


O leitor que admiro é aqule que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.

(Mário Quintana, Caderno H.)

Rua dos Cataventos II

Dorme, ruazinha... É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranqüilos.

Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para o acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...

O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...

Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem pela madrugada,
Os da minha futura assombração...

(Mário Quintana, Poesias, p. 3-4.)